16.4.17

A MOEDA DE CÉSAR E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL


A MOEDA DE CÉSAR E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL
R.M. MENEZES

Dizem-lhe eles: De César. Então ele lhes disse: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.
Mateus 22:21

A face do imperador romano cunhado na moeda é uma clara mensagem que a soberania política vigente do poder era de César. O domínio romano pela palestina antiga era algo marcante e de forte presença política e militar. A politica expansionista romana até certo ponto dava liberdade religiosa aos territórios conquistados, no caso do contexto, não havia grave interferência do Estado nas questões religiosas dos judeus. Estes pagavam o seu dízimo religioso e o tributo estatal.

Entre judeus e romanos havia uma convivência relativamente pacífica. O templo judaico funcionava normalmente neste contexto, devoções a Deus eram realizadas e tributos ao império também.

Podemos extrair até aqui que há um principio estabelecido nesta época, que é obediência ao poder estatal até o limite o qual invade os direitos de consciência que possa impedir que as pessoas adorem e sirvam a Deus livremente. A ordem social e a liberdade dependiam desse princípio, nos tempos de Jesus, e hoje, por que não?

Em Mateus 22, os fariseus se juntaram aos herodianos, um partido judaico mais leal a César, embora opostos se juntaram para colocar uma armadilha para o Senhor Jesus Cristo. Mas o Senhor conhece a maldade do coração humano por dentro, no mais profundo conhecimento e sabia que se tratava de uma armadilha montada por hipócritas. Cristo ensinou que a religião cristã não é inimiga do governo civil em si. Que deveria haver tributo devido ao culto a Deus e tributo a César, mas que fazendo isso ninguém estava livre de outras obrigações, da responsabilidade de piedade e justiça da Lei de Deus. Não era somente dar o tributo, mas dar o coração; a vida por Deus e para Deus. Esta é a grande aplicação do texto.

De modo implícito no texto podemos retirar algumas lições, por exemplo, como obedecer a Deus sem desobedecer a César? Ou como obedecer a César sem desobedecer a Deus? São questões naturais que surgem. Os apóstolos Paulo e Pedro ensinaram que sujeição aos magistrados civis não é inconsistente com o temor a Deus. A quem honra, honra. E a sabedoria pesa todas as coisas.

O que diz o apóstolo Paulo:

Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas.
Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se colocando contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos.
Romanos 13:1,2 (NVI)

As autoridades derivam de Deus. O dever de obediência a Deus é absoluto, mas o dever de obediência aos poderes humanos é relativo. A obediência ao Estado é uma questão aberta, se há legitimidade perante Deus ou não. Importa sempre escolher obedecer a Deus. Quando não há conflitos de direitos e deveres devemos obediência total aos poderes humanos.

Um exemplo, na Inglaterra no século XVII houve um conflito de obrigações e decisões que envolvia a igreja, o rei e o parlamento. E o parlamento e a igreja protestante desobedeceram ao rei. Aqui, neste caso houve uma consciência coletiva por parte do parlamento e igreja em desobedecer. Mas há episódios de consciência individual de desobediência, o caso de alguns profetas do Antigo Testamento e dos mártires da Igreja. A consciência cativa à Palavra de Deus está acima até da própria vida.

A consciência individual ou coletiva deve ser guiada pela Palavra de Deus e não ser juiz em causa própria. A desobediência civil nunca deverá ser entendida como anarquia.

Quando o Senhor Jesus Cristo foi preso pelo poder civil, e injustamente julgado e condenado, nosso Senhor não fez nenhuma resistência. Não só isso, mas quando a resistência foi feita em seu nome Ele repreendeu o discípulo que tinha usado a espada. O Senhor teria que cumprir todo desígnio de sua missão redentora, e nada poderia impedir. -- Ou pensas tu que eu não poderia agora orar a meu Pai, e que ele não me daria mais de doze legiões de anjos? (Mateus 26:53). -- Disse-lhe, pois, Pilatos: Não me falas a mim? Não sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar? Respondeu Jesus: Nenhum poder terias contra mim, se de cima não te fosse dado... (João 19:10,11).

Não há poder, tirânico ou democrático que não esteja sujeito ao poder de Deus. Ele mesmo controla a história e conduz TUDO segundo seu decreto. Deus colocou sua Lei gravada no coração de suas criaturas humanas. Todo sistema humano geralmente recompensa a virtude e pune o erro, em maior ou menos grau. Todo governo moral estabelecido pune a injustiça razoavelmente. Os homens são instrumentos de Deus, queiram ou não queiram.

A providência e o governo soberano de Deus, o Senhor da história usa a instrumentalidade humana e social para trazer benefícios para a sociedade, há toda uma história e evolução das leis civis na ciência do direito. Deus realiza seu governo moral de muitas formas em todas as épocas. Isto é claramente demonstrável.

O apóstolo Paulo em Romanos 13 exorta os cristãos à piedade e justiça, deveres para com Deus em devoção e bondade fraternal, e isto inclui sujeição aos governantes civis e os deveres de justiça e fazer o bem. Esta carta circulou não em qualquer localidade, mas em Roma, a capital do império, um governo idólatra, mas que se devia pagar impostos e prestar obediência, que havia leis razoáveis que davam permissão para liberdade religiosa em fases distintas da história do império romano, em períodos de não perseguição. O apóstolo Paulo enfatizou aos romanos que deveria respeitar o império.

Como era a Síria moderna, há pouco tempo. Um país de maioria muçulmana e que a minoria cristã podia viver em certa tranquilidade antes da guerra atual. Como hoje não há mais autoridade legal nem ordem, mas um intenso conflito, os cristãos têm duas opções, fugir ou combater. Certamente há uma desobediência civil por parte dos cristãos na Síria.

A vontade de Deus é que haja magistrados para resguardar a paz das sociedades. E sua mão é quem dirige todo poder. Deus é o governador universal. Mesmo que os magistrados não creiam em Deus. Não há poder senão de Deus. É Deus a origem de todo poder.

Este princípio sendo distorcido e usado por poderes tirânicos torna homens em deuses. Muitos reis se apoderaram dessa prerrogativa e a distorceram para se tornarem piores governantes, em nome de Deus.

Há casos em que o mais justo é resistir às leis injustas. Não ha neutralidade moral e os cristãos devem se posicionar contra injustiças, a exemplo do aborto (uma questão atual) e outros temas.

Na antiguidade, quando qualquer império ordenava a adoração de ídolos o que podia fazer o povo de Deus? Recusar a submissão ou desobedecer a Deus.

William Carey, conhecido como o “pai das missões modernas”, no século XIX, em missão na Índia, um país com leis estranhas como cremar viva a viúva juntamente com o cadáver do seu esposo. William Carey como missionário cristão não se submeteu a esta cultura e tradição, por mais antiga que fosse, e com muito esforço, influência adquirida e, sobretudo pela providência de Deus, a lei foi abolida. O mesmo aconteceu com a escravidão nos países cristãos e outras leis.

O princípio geral em Romanos 13 deve visto deste modo, que devemos obedecer todas as coisas que não são contrárias à Lei de Deus. Pois importa em primeiro lugar obedecer a Deus.

O que diz o apóstolo Pedro:

Sujeitai-vos, pois, a toda a ordenação humana por amor do Senhor; quer ao rei, como superior;
Quer aos governadores, como por ele enviados para castigo dos malfeitores, e para louvor dos que fazem o bem.
Porque assim é a vontade de Deus, que, fazendo bem, tapeis a boca à ignorância dos homens insensatos;
Como livres, e não tendo a liberdade por cobertura da malícia, mas como servos de Deus.
Honrai a todos. Amai a fraternidade. Temei a Deus. Honrai ao rei.
1 Pedro 2:13-17

Os cristãos devem esforçar-se, em todas as relações, para se comportar corretamente, para que não tornem a sua liberdade um pretexto para qualquer perversidade, injustiça ou negligência do dever; Mas devem lembrar-se de que são servos de Deus.

Segundo Calvino, por causa de sua origem divina, as autoridades civis têm o direito à obediência de todos os homens em geral e dos cristãos especialmente. Os magistrados são instituídos por Deus, investidos de autoridade divina e representam a pessoa de Deus em cujo nome agem. Deus é soberano absoluto sobre todas as coisas. Um grupo que estava no cenário da Reforma do século XVI e que provocou muitos problemas com o movimento reformado por não respeitar a obediência civil legitima foi o ensino anabatista. Este grupo sofreu retaliações por parte de protestantes e católicos.

Algo muito importante é que o dever de submissão às autoridades civis não é ilimitado. Contra os governos injustos é preciso agir pelos meios legais que estão na mão do povo, se houver meios legais. Em último caso os cristãos devem derrubar um governo como numa guerra civil, a exemplo da Inglaterra do século XVII. Quando se vive numa democracia há mecanismos legais para a derrubada de seu governo. A desobediência civil a um governo injusto, para o cristão, não é apenas um direito, é um dever.

Na Confissão de Fé de Westminster, capítulo XX, sobre a Liberdade de Consciência, resume-se que: Deus é o único Senhor da consciência, sua vontade é revelada nas Escrituras e requerer ou impor obediência às doutrinas dos homens é traição contra Deus. Ou seja, a obediência tem limites. No capítulo XXIII do mesmo documento entende-se que, o governo tem sua origem em Deus e não no povo.

Há um comentário do Rev. Onezio figueiredo sobre os capítulos XX e XXIII da Confissão de Fé de Westminster, bem apropriado e colocado:

“ -- Liberdade para a obediência civil -- O eleito de Deus, salvo em e por Cristo Jesus, possui dupla cidadania: a civil e a espiritual. O súdito fiel do Rei eterno é, consequentemente, bom cidadão de seu país, onde Deus o colocou como sua testemunha. O mesmo Senhor do reino dos céus, para o qual elegeu, chamou e salvou os seus regenerados, é também o criador e o gerente da história, que escolhe governantes e os tira do poder; cria nações e as destrói, conforme seus propósitos. Cristo governa os seus por meio das Escrituras Sagradas, a Palavra de Deus, pelo ministério do Espírito Santo no interior de cada redimido e por meio de sua Igreja (...) O crente, portanto, sujeita-se às leis concedidas por Deus às nações e se submete aos mandamentos do Salvador. Legítimas são as penalidades que o Estado impõe aos infratores; justas, as disciplinas que a Igreja aplica aos ofensores de Deus, aos corruptores de sua palavra e aos detratores do corpo de Cristo. Eis porque ao servo de Deus impõem-se submissão e obediência às autoridades civis e eclesiásticas: Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor, quer seja ao rei, como soberano, quer às autoridades, como enviadas por ele, tanto para castigo dos malfeitores como para louvor dos que praticam o bem ( I Pe 2. 13,14 ). Como livres que sois, não usando, todavia, a liberdade por pretexto da malícia, mas vivendo como servos de Deus ( I Pe 2. 16 ).
(...)
O Servo de Deus possui dupla cidadania, a celeste e a terrestre. A ênfase na cidadania celestial não desqualifica nem elimina a cívica; pelo contrário, qualifica-a e a intensifica. O bom cristão é, por vias consequenciais, melhor cidadão que o mau cristão. Quem obedece e serve a Deus com humildade e fidelidade, obedece e serve ao seu país com honestidade e honrada civilidade. Somos libertos para o exercício do bem, não para a prática do mal. Somos livres para servir a Deus, não a nós mesmos, ao mundo e ao mal.
(...)
O cristão, em decorrência da dupla cidadania, a terrestre e a celeste, está sob jurisdição das autoridades civis e sob controle do Criador. Cada país tem sua constituição federal, mas a Igreja deixa-se gerir pelas Escrituras Sagradas, sua regra de fé e norma de comportamento”.

Primeiramente somos povo de Deus, posteriormente cidadãos. Qualquer ato de desobediência civil, familiar, eclesiástica ou outro ato social, é também uma ofensa, a não ser que esteja obedecendo primeiro a Deus. Como no caso dos Reformadores do século XVI, que desobedeceram a Igreja Católica Romana, por sua corrupção desenfreada.

Uma coisa é certa em toda história de uma sociedade humana, a obediência ou desobediência sempre carregam em si consequências e resultados históricos. O mundo nunca será melhor com desobediência ilegítima e anarquia. O mal não pode produzir uma sociedade boa.

A desobediência civil fundamentada na verdade e na justiça é uma coisa, uma desobediência civil que coloca o homem acima da vontade de Deus é anarquia. Como bem disse Rushdoony: “A desobediência é um dever moral quando se obedece a Deus antes de obedecer aos homens”.

Jesus Cristo em Mateus 22 aplicou a justiça que seus ouvintes deveriam obedecer ambos os tributos. A resposta de Cristo na ocasião não foi a desobediência civil ou uma revolução. Pagar impostos é um aspecto pequeno de nossa obrigação como cidadão. O mais importante é render nossa vontade a Deus em tudo, reconhecer Deus como nosso Salvador e Senhor.

E mesmo Jesus Cristo dando a resposta mais justa e sábia, ainda foi acusado de rebelde contra César: “E começaram a acusá-lo, dizendo: Havemos achado este pervertendo a nação, proibindo dar o tributo a César, e dizendo que ele mesmo é Cristo, o rei”. (Lucas 23:2). Mentirosos e hipócritas! Sua resposta havia acabado com a armadilha deles, Jesus ensinou que se devia pagar o que era devido a César e a Deus. Os inimigos de Deus são mentirosos e não raramente elaboram leis que são contra a moral de Deus. A estes não se deve obedecer.